ADOÇÃO UNILATERAL COM A MANUTENÇÃO DO PODER FAMILIAR DE PAI BIOLÓGICO
Estudo feito pela nossa advogada de direito de família, Dra Francelle Barcelos, acerca da adoção e do poder familiar.
O presente texto tem como objetivo de estudo analisar a viabilidade de coexistência de adoção unilateral com manutenção do poder familiar pelo pai biológico, utilizando como analise o caso específico do REsp. 1.410.478/RN (oriundo de Ação de Adoção), julgado pelo STJ em 05 de dezembro de 2019.
O REsp em apreciação, interposto pelo pai biológico da menor, buscava revogar a adoção deferida em primeira e segunda instâncias, em favor da mãe afetiva (possuidora da guarda fática), e, para tanto, em suas razões, apresentou como fundamento ofensa aos artigos 45 e 50, §13º do ECRIAD, tendo em vista que fora deferida a adoção sem consentimento do pai ou regular destituição do poder familiar, a pessoa não inscrita previamente no cadastro de adoção.
Inicialmente será feita uma rápida exposição quanto aos tramites da adoção no Brasil, ou seja, quais os requisitos impostos por lei para que uma pessoa possa adotar uma criança, bem como o que é necessário para que essa criança esteja disponível para à adoção. Após, será apresentado o princípio do melhor interesse da criança, e, por fim, será detalhado o caso concreto do REsp. 1.410.478/RN , acompanhado dos argumentos da decisão do STJ.
Temos que a adoção é “o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente de procriação, o vínculo da filiação.” . Atualmente, é estabelecida pela legislação (art. 227, § 6º CF e arts. 20 e 41 do ECRIAD) a isonomia entre os filhos biológicos e os adotados , de modo que, além de todos os efeitos patrimoniais estabelecidos pela filiação, é constituído também os efeitos pessoais, que, em suma, são: o poder familiar é transferido para a pessoa do adotante, o adotado assume legalmente o status de filho, a relação familiar se estende à toda família do adotante, e os vínculos jurídicos do adotado com a sua família de origem são rompidos em definitivo.
A adoção no Brasil é regulamentada pelos artigos 39 a 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, legislação em que é estabelecido uma série de requisitos para que uma pessoa esteja apta a adotar, bem como para que uma criança possa ser adotada. Em relação ao adotante, este deve ter idade mínima de 18 anos, ter uma diferença de, ao menos, 16 anos do adotado (art. 42 e seus parágrafos, ECRIAD) e estar cadastrado no Sistema Nacional de Adoção. Já o adotando, não pode ter mais de 18 anos quando do pedido da adoção (art. 40, ECRIAD) e, de acordo com o artigo 45 do ECRIAD e seus parágrafos, a adoção, para que ocorra, depende do consentimento de ambos os pais, ou do representante legal do adotando. Esse consentimento somente é dispensado caso os pais sejam desconhecidos (por exemplo, a criança tenha sido abandonada) ou tenham sido destituídos do poder familiar.
Necessário frisar que, em atenção ao art. 39, §1º do ECRIAD, a adoção é medida excepcional, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados todos os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, e irrevogável, ou seja, a partir do momento em que os genitores entregam a criança para a adoção, em regra, não se pode voltar atrás, isso porque a lei tenta assegurar ao máximo a segurança jurídica de todo o transcorrer da adoção, evitando assim o desfazimento de qualquer ato, pois, se assim não fosse, seria desestimulada a pratica da adoção, e o mais importante, o melhor interesse da criança não seria observado.
O melhor interesse da criança é um princípio geral, que ,apesar de não estar previsto na Constituição Federal de forma expressa, é inerente ao sistema de proteção integral existente no artigo 227, caput, CF/88 . No ordenamento jurídico brasileiro, o referido princípio passou a existir de forma expressa a partir da promulgação do Decreto n° 99.710/1990, após a ratificação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, trazendo em seu artigo 3.1, de acordo com a tradução oficial, que: “todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. No Estatuto da Criança e do Adolescente, o art. 1º dispõe expressamente sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, o que é reforçado nos artigos 100, parágrafo único, inc. IV e 39, parágrafo 3º .
O princípio do melhor interesse da criança, apresenta uma vasta possibilidade interpretativa ao assegurar que deve ser priorizado e resguardado, o interesse do menor, frente a qualquer outro. Uma vez que devem ser atendidas as necessidades da criança – seja ela financeira, física ou emocional – qual delas é mais ou menos relevante e que atinge de forma mais ampla o seu interesse? Imaginemos um exemplo onde a pretensa família adotiva possui estrutura emocional e afetiva para ter a criança, inclusive com laços afetivos já estabelecidos, enquanto que a família biológica – que após disponibilizar a criança para a adoção, se arrependeu – possui mais capacidade financeira, apesar de não possuir estrutura emocional (psicológica), e também laços afetivos com a criança; qual será o melhor interesse do menor? Não há uma resposta objetiva.
Após demonstrar os requisitos para a adoção e o princípio do melhor interesse da criança, passemos a apresentar o resumo fático do REsp. 1.410.478. A criança foi entregue pela mãe biológica à adotante com apenas alguns dias de nascida. A adotante não possuía registro no Cadastro Nacional de Adoção. Após decisão judicial que deferiu a guarda à adotante, o Ministério Público opôs recurso alegando falsidade de algumas informações do registro de nascimento da menor, entre elas, o nome do pai biológico. O MP alegou ter sido informado pelo Conselho Tutelar que o suposto pai biológico estaria em busca da criança. No curso do processo, a mãe biológica admitiu que o nome que constava do registro não era o do pai verdadeiro, sendo revogado, assim, o consentimento para a adoção. Após um exame de DNA, constatou-se que o sujeito que denunciou o desaparecimento da criança ao Conselho Tutelar era, de fato, o pai biológico. Esse ingressou com pedido de guarda e afirmou expressamente que não consentia com a adoção. O pedido do pai biológico foi rejeitado em primeira e segunda instância. Este conseguiu no decorrer da ação, o direito de convivência com a menor. Nesse momento, a criança já está com cerca de 4 anos de idade.
O cerne da controvérsia decidido pelo STJ era: analisar se o princípio do melhor interesse da criança poderia justificar a colocação da criança em família substituta, fora das hipóteses legais ou jurisprudenciais já previstas, ainda que o genitor se oponha expressamente, sendo inexistente qualquer causa de destituição do poder familiar, e se há viabilidade de coexistência de manutenção do poder familiar e de adoção unilateral.
Para solucionar a questão enfrentada pelo STJ, necessário considerar alguns pontos. O primeiro é que o STJ entende que, quando a situação de fato está consolidada há muito tempo, com rompimento de vínculo com os pais biológicos e adaptação à família adotiva, pode-se excepcionar a não existência de consentimento ou destituição prévia do poder familiar. O caso examinado não se trata de vício de consentimento do pai para a adoção, mas de negativa expressa de consentimento. Não houve abandono por este, ao contrário. Desde o momento em que conhecedor da paternidade, lutou para ter a filha em sua companhia, tendo tido êxito na obtenção ao direito convivência.
De acordo com o acórdão, a situação dos autos não se enquadra em nenhuma das flexibilizações ao poder familiar já decididas anteriormente pelo STJ. A circunstância também não se enquadra em nenhuma das hipóteses de destituição de poder familiar, contidas nos artigos 1.638, do Código Civil, e 24 do ECRIAD. Por fim, o TJ/RN, quando em análise do recurso, entendeu que a postulante à adoção tinha boa-fé.
A solução encontrada pelo STJ, para solucionar o caso, parece ter sido a melhor possível para preservar o melhor interesse da criança. Inicialmente foi fixado que a interpretação de toda lei, deve ser de acordo com o seu fim social, com fundamento nos artigos 5º da LINDB e 6º do ECRIAD . Ato contínuo, foi deixado claro que a mulher adotante agiu todo o tempo com boa-fé. Quanto ao pai biológico, foi reestabelecido o poder familiar, uma vez que sua conduta não se enquadrava em nenhuma das hipóteses legais de destituição; já ao que tange a mãe biológica, esta teve o poder familiar destituído, e a maternidade socioafetiva foi reconhecida mediante adoção unilateral. O STJ entendeu pela possibilidade de coexistência do poder familiar do pai biológico e da adoção unilateral pela mãe socioafetiva, utilizando, para tanto, interpretação teleológica (ou aplicação analógica) das normas dispostas no §1º do art. 41 (foi dilatada a interpretação desse artigo justamente pelo fim social da norma e pelo melhor interesse da criança) e no §13 do art. 50, todos do ECRIAD.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto-Lei n° 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm>.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>
BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
CNJ. Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Passo a passo da Adoção. Disponível em: < Passo a passo da adoção - Portal CNJ>
GOMES, Orlando. Direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 369.;
STJ. Quarta Turma. Recurso Especial n° 1.410.478/RN. Ministra Relatora Maria Isabel Galloti. Julgado em 05 dez de 2019. Publicado em 04 fev de 2020. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1842520&num_registro=201303449720&data=20200204&formato=PDF>.
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